quinta-feira, 1 de maio de 2014

20 anos sem SENNA

Nos últimos 20 anos, um pouco mais por estes dias de proximidade com a data redonda, o nome de Ayrton Senna raramente foi dito sem que alguns desses adjetivos e expressões viessem colados nele — como se fosse ofensivo, ou reducionista, citá-lo sem agregar algo que o exaltasse para além do que era, um grande corredor.


É compreensível. Resvala na obviedade dizer que Senna foi um sujeito especial. Não o único, porém. O esporte está cheio de heróis, mitos, mágicos, imbatíveis etc. É uma pena, porém, que a maioria de seus fãs/seguidores/devotos enxerguem nele apenas essa figura mitológica, colocando tal elenco de virtudes reais ou imaginárias acima da maior de todas: suas qualidades como piloto.

A morte trágica e a imagem construída durante anos por uma mídia sedenta de ídolos ofuscou um pouco aquilo que Senna melhor fazia. Se é verdade que Ayrton gostava dessa aura sobrenatural — e que se comportasse como tal, com frequentes arroubos alegóricos —, era no dia a dia de sua profissão que ele revelava seu grande talento; era no chão de box que Senna conseguia se livrar das embalagens que o vendiam como uma espécie de divindade para exercer com maestria seu ofício. 


Piloto excepcional, perfeccionista, decidido, rápido e arrojado, é na admiração de seus pares — outros pilotos, engenheiros, técnicos, mecânicos, donos de equipe — que se encontra o real valor do brasileiro morto aos 34 anos num acidente em Imola. Um acidente que, ao que tudo indica, poderia ter sido evitado. E que, ao que tudo indica, teve o desfecho que teve por uma infelicidade brutal, que pode ser medida em centímetros — se a barra da suspensão atingisse o capacete um pouco acima da fresta da viseira, Ayrton sairia de seu carro com o pescoço doendo e puto da vida, pouco mais do que isso.


Senna era uma figura não muito amistosa, porque optou por colocar à frente de qualquer outra característica a competitividade. Ao longo dos anos, incorporou esse papel de tal forma que passou a ver quase todos ao seu redor como inimigos. Aqueles que rivalizavam com ele no talento, como Prost, Mansell, Piquet e Schumacher, não mereciam mais do que o ódio reprimido quando se encontravam na pista. Era jogo pesado, o tempo todo.



Por ter escolhido esse caminho, Senna, nos seus anos de F1, nunca me pareceu uma pessoa feliz. Sorria raramente, e parecia ter vergonha de mostrar algum sinal de alegria natural. Sempre me passou a impressão de que encarava o relaxamento como uma fraqueza. 

Falo do que vi e observei em quase sete anos de convivência exclusivamente nos autódromos, no ambiente que me interessava — o da F1. Se ele era totalmente diferente fora dali, em sua casa de Angra, passeando de jet-ski, junto com a família, com as namoradas e os amigos, não era algo que me dizia respeito. Senna, no habitat que também era o que lhe interessava, era um cara teso, eletrificado. Essa era a única forma que ele acreditava ser compatível com seus objetivos sempre muito claros: ganhar corridas e campeonatos, ser o melhor de todos.


Outros pilotos — e atletas — conseguiram tanto quanto Senna, ou mais, sem ter de assumir uma personalidade de esfinge. Não faço juízo de valor, aqui. Era o jeito dele, não há nada de errado nisso. Mas é inegável que esse estado permanente de tensão e rigidez fazia dele um homem próximo do atormentado. Não era fácil ser Senna como Senna achava que deveria ser. Ele só se libertava quando sentava num carro. Aí, desconfio, encontrava a felicidade. Especialmente quando vencia.

Nos últimos dois anos e meio de carreira, 1992, 1993 e o início de 1994, foi difícil encontrar tal felicidade. Ayrton tinha uma urgência de vitórias. E não era bobo. Sabia que todo seu talento, que considerava superior ao dos demais — e aí não há nenhum traço de presunção, ele precisava pensar assim para sustentar o nível necessário de autoconfiança —, não era o suficiente para se impor como o melhor de todos. Ele já tivera nas mãos um equipamento que lhe dava essa condição. Quando deixou de ter, passou a conviver com a derrota. Isso, para Senna, era insuportável.


E foi assim em seus primeiros anos de F1. Com uma diferença: ali, na Toleman e na Lotus, ele tinha consciência de que era uma questão de tempo até engatar uma carreira parecida com a que construiu na Inglaterra, na F-Ford e na F3. Soube esperar e se preparar. Logo no primeiro GP em que conseguiu ver a bandeira quadriculada, em Kyalami, percebeu que para ser um vencedor a habilidade e a garra não bastavam. Moldou seu corpo às exigências da categoria e transformou-se num touro. Estabeleceu metas e foi atrás delas. Não se pode dizer que não conseguiu atingi-las.

Ocorre que Ayrton se sentia muito diferente dos outros, quase que um detentor exclusivo das qualidades que propagava com seus frequentes discursos repletos de clichês de autoajuda. O público no Brasil comprava esse pacote e adorava o tom épico que imprimia a cada vitória. Um GP não era um GP, mas uma epopeia. Um embate entre o Bem e o Mal. Um confronto entre a Virtude e a Infâmia. Tudo em maiúsculas. Um exagero. Senna era um exagerado, como cantava Cazuza.

Mas era legal vê-lo guiando. Abstraindo-se toda a patacoada que normalmente contamina julgamentos e embaça a visão, Senna era alguém que valia a pena acompanhar de perto. Dirigia de forma exuberante e era um esportista de primeiríssimo nível, alguém que sabia estar escrevendo um capítulo importante da história do esporte que escolheu.

Carregava nas tintas, claro. Talvez não fosse o bastante fazer uma volta alucinante em Mônaco e ser reconhecido como grande piloto por isso. Era preciso ir além para reforçar sua “diferença”, e então dizia que tinha entrado num túnel e viajado para outra dimensão. Ganhar em Suzuka depois de uma largada desastrosa, despencar lá para trás, se recuperar espetacularmente e conquistar o título era pouco. Ficaria mais sensacional se dissesse que tinha visto Deus numa das curvas da pista japonesa. Bater a imbatível Williams na chuva em Donington não se resumia a uma demonstração de incrível habilidade no molhado. Se fosse resultado de uma ajuda enviada diretamente do Firmamento, melhor ainda.

Senna acreditava nessas coisas? Provavelmente sim. Seus torcedores, certamente. Poles, vitórias e títulos ficavam ainda mais saborosos se viessem acompanhados de um túnel tridimensional aqui, um encontro com o Todo Poderoso ali, um milagre acolá. Ayrton não tinha vergonha de expor esse lado, digamos, ungido. Quem haveria de questioná-lo?

Nada disso, no entanto, funcionaria se ele não fosse o grande piloto que era. Imagine-se um cara que se classifica em 17° em Mônaco e diz que entrou num túnel infinito, sendo conduzido por uma mão invisível. Ou que larga miseravelmente em Suzuka, termina em 20° e garante que viu um velhinho barbudo de bata e cajado no fim da reta. Ou ainda que roda e atola na brita em Donington e ergue as mãos para os céus, de onde um clarão inexplicável o abençoou
.


Seria considerado um doido ridículo. 

Senna virou o que virou porque ganhava corridas e conquistava campeonatos. Porque durante sua trajetória na F1, sempre buscou vitórias e não se conformava com menos do que isso. Era um atleta admirável por seu talento e obstinação. E porque morreu de um jeito muito triste. Exageradamente triste.

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